"Sabes o que me faz mais impressão em ti? É que a matéria prima é, de facto, muito boa; tu pensas e sentes bem as coisas, tens uns óptimos miolos e um coração enorme, embora, como já te tinha escrito um dia, demasiado grande para caber só lá uma pessoa e demasiado pequeno para ela poder lá ficar.
Mas falta-te o mais importante, aquilo que nos faz sair de nós mesmos e sentir a vida na sua plenitude: falta-te a dimensão dos outros. Dás pouco, apesar de me tentares convencer que dás muito. Quando se dá a sério, nunca se cobra, nem sequer mede o quanto se dá. Nunca é demais, sabias?
Mas é como te disse uma vez: tu não desenvolves, não te deixas ir, não te perdes, no último momento, defendeste-te sempre com um jogo de cintura invejável e, com a tua implacável lucidez cartesiana, tens sempre para ti e para os outros as mais fundamentadas e lógicas justificações. Não passas de um atrasado emocional, consciente das tuas limitações, mas sem nenhuma vontade de as ultrapassar.
Houve momentos em que invejei essa tua autonomia e independência que te fazem tão inexpugnável, mas agora não. Deve ser horrível desligar a vida, como se nos tirassem da ficha com um gesto brusco e desumano.
Desculpa o desabafo, mas estou nos antípodas, ou como me disseste uma vez, talvez esteja apenas muito perto da perfeição. Não aspiro a nenhum tipo de perfeição, mas gostava de construir alguma coisa sólida com alguém mesmo especial. E tu, nem disso gostavas. Às vezes, acho que nem sequer tem a ver com a idade: é estrutural e incontornável em ti. Quando é que percebes que viver na solidão é a maior e a mais estéril das prisões? À força de te protegeres dos outros, ausentas-te de ti mesmo, e onde estás agora? Qualquer dia olhas para dentro de ti e já lá não estás."
in Alma de Pássaro, Margarida Rebelo Pinto
P.S. Se te escrevesse uma carta era isto que te diria!!